E o cinema virou sapataria

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As novas gerações que se criaram em Assis Chateaubriand não conheceram o Cine Avenida. Não era só um cinema, mas o “point” de várias épocas, onde a infância, juventude e velhice se encontravam. O novo e o velho se faziam antigos e atuais, onde não havia segmentação, porque as diferenças não ocupavam aquele espaço.

O “Cine Avenida” trazia os filmes de sucesso. Do sofisticado inglês agente 007, ao nacionalmente caipira Mazzaropi, que lotavam a sala de projeção, inicialmente num prédio de madeira. O Censo de 1970 apontava 112 mil habitantes em todo o município. Há quem afirme que no final dos anos 60 a população alcançou os 140 mil habitantes.

Muita gente conheceu o futuro marido ou esposa no Cine Avenida. Os namorados mais “afoitos” procuravam sentar-se durante as sessões no saguão superior, que ficava em duas alas ao lado das máquinas de passar filme. O barulho das fitas rodando nos projetores ainda estão nos ouvidos da minha memória, tec tec tec tec infindável. O local era conhecido por “inferninho”, por ser isolado e mais escuro que a platéia principal. Os principais lançamentos do cinema mundial passou por ali. De “Bem-Hur” à “Lagoa Azul”, de “E o vento levou” até “Inferno na Torre”, passando por “Romeu e Julieta” e “Spartacus”.

E as cortinas da tela se abriam ao som da orquestra de Paul Mauriat. Nas Sexta-Feiras Santas, a primeira sessão começava às 11 horas da manhã. A cada duas horas recomeçava o velho e surrado filme “A Paixão de Cristo”. Ainda em preto e branco e aos “pulinhos”, o filme, todo riscado e faltando pedaços, levava a plateia ao choro na crucificação e devolvia o consolo quando mostrava um Cristo cor de cinza subindo a um céu pintado à mão, de nuvens mansas, mas que detinham relâmpagos que não passavam de pontos desbotados fazendo frestas e deixando fluir mais forte a luz do carvão incandescente da máquina projetora.

O povo ia ao cinema e vibrava, sapateando no assoalho e gritando quando o mocinho enchia de pancadas a cara do bandido ou quando a cavalaria avançava sobre os “apaches” para salvar o herói que beijava a mocinha no fim do filme, quando então aparecia aquele “the end”, que eu não entendia o que significa, mas sabia que era o “fim”. O bang-bang à italiana arrastava a cidade toda para ver Django, Sartana, Ringo, Giuliano Gemma, Anthony Anthony Steffen e Fernando Sancho com seu bandidos mexicanos. Alguém se lembra da metralhadora no caixão de defunto arrastado por Franco Nero? A cara de Linda Blair vomitando verde, encarnando o diabo em “O Exorcista”, é inesquecível pra quem a viu na tela grande.

Assistir àquelas histórias melosas, dramáticas ou de suspense era uma delícia, mesmo nas cadeiras duras do Cine Avenida, que pertencia ao casal Noburo e Maria, simpáticos nisseis que venderam o Cine para se dedicarem à agricultura. Cinema que sem eles perdeu a força e, em pouco tempo, foi vendido para virar vagas de lojas.

A televisão tinha tomado o lugar das salas de exposição de filmes para fazer esse papel no conforto do lar do expectador. Acabaram-se os encontros no escurinho do cinema. Adeus inferninho. Beijo escondido é bom em qualquer lugar, mas igual naquele inferninho do cinema, nunca mais!

O último proprietário bem que tentou manter a tradição, mas as pessoas estavam encantadas com a luz azul do tubo de televisão e, com os programas que passavam, um atrás do outro, de graça. Também foram para outros pontos os pipoqueiros que não perdiam uma sessão sequer. Ficaram na saudade as balas Toffe na baleira do cinema, uma salinha na entrada com milhares de balas doces. Impossível esquecer a mistura de cheiros enquanto passava o filme, aroma de pipoca com o tutti-fruti dos chicletes e os perfumes de todos os tipos, do “Tabu” ao francês do Paraguai.

Um belo dia dos anos 80, o prédio foi vendido e o novo proprietário transformou a sala de cinema em uma loja de calçados.

Ao som de “A taste of honey”, um dia a tela se fechou pela última vez, apagando o último raio do canhão de luz que tantas vezes projetou a sétima arte, calando também no recinto as vozes que muitas vezes disseminaram sonhos. E o cinema, onde muitos deram o primeiro beijo, virou sapataria.

Foto – Cine Avenida – Construção em 1969 – inaugurado em 1970